O advogado Fernando Fernandes e o historiador Carlos Fico, titular de História do Brasil da UFRJ, tiveram acesso a 10 mil horas de gravações das sessões — inclusive as secretas — do Superior Tribunal Militar e identificaram áudios que comprovam a prática de tortura durante o período da ditadura militar.
A revelação dos áudios foi feita pela jornalista Miriam Leitão, do jornal O Globo, ela mesma uma vítima das torturas dos militares.
Em reportagem, ela narra que, na sessão de 24 de junho de 1977, o general Rodrigo Octávio Jordão Ramos aborda um casos. “Fato mais grave suscita exame, quando alguns réus trazem aos autos acusações referentes a tortura e sevícias das mais requintadas, inclusive provocando que uma das acusadas, Nádia Lúcia do Nascimento, abortasse após sofrer castigos físicos no Codi-DOI.”
O aborto foi provocado por “choques elétricos no aparelho genital”. Nádia estava grávida de três meses e tinha medo de perder o filho, o que viria a acontecer de fato, em 7 de abril de 1974.
As gravações das sessões do STM abarcam o período entre 1975 e 1985. Em 2006, o advogado Fernando Augusto Fernandes pediu acesso ao material, mas o STM se recusou a fornecer. Ele então acionou o Supremo Tribunal Federal. Em 2011, a ministra Cármen Lúcia ordenou que o material fosse fornecido, mas a ordem só foi cumprida quando o Plenário do STF acompanhou o voto da ministra. O advogado obteve o acesso em 2015 e as centenas de fitas de rolo com as gravações passaram a ser digitalizadas.
À ConJur, Fernando Fernandes explica que “a divulgação dos arquivos dos julgamentos de presos políticos é essencial para conectarmos as arbitrariedades e entendermos a tortura de 1964 e a moderna de Guantánamo e de Curitiba. A luta pela abertura dos arquivos sonoros dos julgamentos de presos políticos de 64 durou 20 anos”.
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O advogado afirma que, com a digitalização completa dos áudios, pretende montar um site, que tornará o arquivo acessível em conjunto com vários outros trabalhos.
Em outro áudio, o general Rodrigo Octávio, no mesmo dia, trata de outro caso de tortura contra uma mulher grávida. “Lícia Lúcia Duarte da Silveira desejava acrescentar que quando esteve presa na Oban foi torturada, apesar de grávida, física e psicologicamente, tendo que presenciar as torturas infligidas a seu marido”, leu durante a sessão.
As gravações também demonstram o misto de espanto e naturalidade dos ministros diante dos casos. Alguns duvidam das denúncias, outros exigem apuração. O general Augusto Fragoso, em 9 de junho de 1978, afirma que “quando os primeiros advogados começaram a falar no DOI-Codi, DOI-Codi, DOI-Codi, eu, como único representante do Exército, na hora aqui presente, experimentei um grande constrangimento em ver essas organizações tão acusadas”. O ministro afirma que nunca “viu acusações desse jaez” e pede que o Exército se “recolha aos afazeres profissionais”.
Outro que se manifestou foi o almirante Julio de Sá Bierrenbach. Durante sessão do dia 19 de outubro de 1976, o militar chega a elogiar a repressão, mas condena as práticas de tortura. “O que não podemos admitir é que o homem, depois de preso, tenha a sua integridade física atingida por indivíduos covardes”, afirma. Ele classifica os torturadores de “sádicos” e diz que “já é hora de acabar de uma vez por todas com os métodos adotados por certos setores policiais”.
No dia 13 de outubro de 1976, o juiz Waldemar Torres da Costa afirma que “começa a acreditar” na veracidade das denúncias. Na mesma sessão, o brigadeiro Deoclécio Lima de Siqueira se diz contrário ao recebimento de denúncias contra as “forças antissubversivas” pela corte.
As gravações registram também a atuação do notório advogado Sobral Pinto que atuou na defesa de perseguidos políticos durante a ditadura. “Os senhores ministros não acreditam na tortura. É pena que não possam acompanhar os processos como um advogado da minha categoria acompanha, para ver como essa tortura se realiza permanentemente”, afirmou em uma sessão. O áudio dessa sessão está registrado no filme Sobral — o Homem que não tinha preço.
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